EXPOSIÇÃO VIRTUAL
Ausência/Presença: os sentidos do corpo na arte africana
Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua
Gabrielle Nascimento
O tema do corpo na arte africana não é inédito e muito menos original. Ele já foi explorado em exposições e também foi objeto de algumas publicações dentro e fora do Brasil. Ausência/Presença: os sentidos do corpo na arte africana apresenta uma discussão pautada no corpo que tem como referência obras da Coleção Rogério Cerqueira Leite. O conjunto selecionado nos leva a caminhos distintos daqueles já apresentados sobre essa temática. Muitos dos objetos que chamamos de arte africana possuem profunda relação com o corpo, seja por representá-lo, como é o exemplo de muitas estatuetas, seja por estar diretamente associado a ele, como é o caso dos adornos e, sobretudo, das máscaras, certamente as obras africanas mais celebradas pelo Ocidente. Pensar o corpo na arte africana exige de todos nós não apenas uma abertura para lidar com o diferente, mas também um esforço para não projetarmos as nossas próprias concepções e visões de mundo na interpretação e análise de objetos repletos de símbolos e códigos que não são necessariamente compartilhados ou familiares a nós. Por outro lado, pensar o corpo na arte africana nos exige também reconhecer que, quando esses objetos deixam os seus lugares de origem e adquirem o status de obra de arte no Ocidente, eles ganham novos sentidos e significados.
Assim, pensar o corpo na arte africana pode também significar falar da sua própria ausência. Esse é, sem dúvida, o exemplo das máscaras, obras que têm destaque no primeiro módulo da exposição intitulado “Máscara: o corpo como ausência”. Nessa parte, pretendemos apresentar alguns pontos de fricção entre a África e o Ocidente no que diz respeito à própria concepção de máscara e a sua relação com o corpo.
Há séculos as máscaras têm sido levadas para o Ocidente, ocupando, sobretudo, as coleções de museus de países europeus que tiveram contatos seculares e/ou colônias na África. A maioria desses objetos é ressignificada no momento em que é adquirida por viajantes, exploradores e agentes coloniais, já que o que é priorizado e desejado no momento da coleta se restringe quase sempre à parte que vai à cabeça, o que os africanos chamam de máscara, ou seja, um fragmento de algo maior e mais completo, que originalmente inclui também a vestimenta que cobre o corpo do mascarado.
Dessa forma, quando adquiridas pelos europeus no continente africano, as máscaras ganham uma concepção desvinculada do corpo e do movimento, o que se perpetua até hoje, sendo essa noção distinta daquela compartilhada por muitos povos africanos. Curiosamente, essa concepção construída fora da África retorna ao continente e passa a pautar a produção de máscaras feitas para suprir as demandas do mercado de arte. Assim, enquanto a máscara produzida para ser dançada é pensada e executada pelo escultor tendo em vista a vestimenta que a acompanha, bem como o corpo do mascarado em movimento, aquela pensada e produzida para o consumidor fora da África comumente apresenta ajustes para que ela seja, por exemplo, facilmente fixada em uma parede ou exibida em uma base. É comum, portanto, percebermos alterações no que diz respeito ao seu tamanho, profundidade e, até mesmo, à escolha da madeira, mais leve e fácil de ser trabalhada e transportada.
Enquanto o primeiro módulo da exposição tem como foco o corpo como ausência, o segundo, intitulado “O corpo e seus múltiplos sentidos na estatuária”, dá atenção à sua presença. O conjunto de obras apresentado nos permite discutir como o corpo pode ser determinante para definir um tipo de objeto, como é o caso do par de estatuetas de gêmeos Ibeji exibido na exposição. Independentemente das diferenças estilísticas, esse tipo de objeto possui quase sempre a mesma posição corporal, que permanece ao longo do tempo.
Pequenos gestos, como as mãos projetadas nos seios, podem soar para nós como apenas uma escolha aleatória do escultor, mas para os povos luba, da República Democrática do Congo, por exemplo, eles expressam valores ou visões de mundo. Nesse caso específico, o gesto simboliza o importante papel da figura feminina naquela sociedade. Marcas corporais, formatos e proporções de corpo podem ser um indicativo também de identidade étnica, enquanto o destaque para algumas partes do corpo quase nunca pretende imitar a realidade, mas comunicar valores e concepções. Assim, um abdome sobressaltado não necessariamente é indicativo de gravidez e pode estar presente também em representações masculinas. Ele está associado a uma ideia mais ampla de fertilidade.
Discutir o corpo na estatuária africana nos permite reconhecer a existência de códigos e símbolos que não são necessariamente compartilhados entre nós. Mais que isso, muitos deles simplesmente não serão acessados por nós de forma profunda ou completa, pelo simples fato de eles estarem intimamente atrelados a cosmovisões pertencentes a um passado distante ou restritas a determinados grupos.
Assim como observamos com as máscaras, quando transportadas para o Ocidente ou quando produzidas exclusivamente para atender a demandas do mercado de arte, as estatuetas também são ressignificadas. No caso daquelas produzidas para serem comercializadas, é importante destacar que nem sempre o escultor domina ou é conhecedor dos códigos culturais que a obra procura representar. O resultado, em muitos casos, revela a criação de novos corpos e sentidos.
A exposição Ausência/Presença: os sentidos do corpo na arte africana é um convite para que possamos não apenas refletir sobre o corpo em si, mas também para que possamos ampliar essa discussão, incluindo obras que nos desafiam e colocam em xeque a própria noção de arte africana construída no Ocidente.